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Sobre o lamentável episódio dos estudantes de medicina (considerações sobre uma cena de machismo explícito)

Sobre o lamentável episódio dos estudantes de medicina (considerações sobre uma cena de machismo explícito)

22-09-23 | Artigos | Aline de Carvalho Giacon |

Essa é a diferença entre os gêneros, enquanto as mulheres querem ter autonomia sobre seus corpos, homens se sentem no direito de, pública e coletivamente, exibirem seus órgãos sexuais e simular masturbação coletiva diante de um jogo de vôlei feminino.

A situação é tão absurda que não conseguimos sequer imaginar algo semelhante praticado por mulheres. Em protestos, jovens são presas por deixarem os seios à mostra, mesmo não se tratando de órgão sexual e tampouco tendo qualquer tipo de simulação de ato sexual. Mas homens adultos que praticaram aquela cena grotesca continuaram livres de responsabilidade até o vídeo viralizar.

Não só se sentiram no direito de objetificar as jogadoras de vôlei, mas não tiveram qualquer pudor em exibir suas genitais para centenas de pessoas e não se preocuparam com eventual gravação da cena.

Não considero adequada a expressão “certeza da impunidade”, mas se há alguma situação em que ela se aplica, com certeza, é nesse lamentável episódio de masculinidade tóxica e cultura do estupro.

Mamas masculinas, independentemente do tamanho e formato, são aceitáveis em público. As femininas, mesmo na função mais pura que é a da amamentação, é motivo para recriminação. Pelos masculinos? Sinal de virilidade! Os femininos? Falta de higiene.

Enquanto mulheres são julgadas, ofendidas e recriminadas por amamentar em público ou por deixarem de se depilar, os “meninos” estavam só brincando.

Há não muito tempo houve uma polêmica em relação ao uniforme das jogadoras de vôlei de praia. Jogadoras norueguesas foram multadas por não usarem biquíni na partida .

Dependendo da roupa que a mulher usa, está provocando os homens, que, claro, não conseguem se controlar. Afinal, não estamos falando de seres racionais, mas movidos pelo instinto predatório e ancestral. As mulheres têm que se controlar desde muito jovens, tem que saber se portar, se vestir adequadamente, tudo para não causar nos eternos meninos uma reação predatória.

Nas escolas, meninas são proibidas de usar shorts , blusas de alcinha, mas os meninos sequer são orientados de que devem respeita-las e trata-las como seres humanos e não como corpos, existentes para sua apreciação.

Temos que ouvir de homens adultos que meninas os provocam, a culpa é sempre da mulher/menina, jamais alcançando o assediador.

Citando o discurso emblemático do filme “Barbie”, que vale a pena ser transcrito na sua íntegra:

“É literalmente impossível ser uma mulher. Você é tão linda, tão inteligente, e me mata ver que não se acha boa o suficiente. Tipo, temos que sempre ser extraordinárias, mas de alguma forma estamos sempre agindo errado. ocê tem que ser magra, mas não muito. E você nunca pode dizer que quer ser magra. Tem que dizer que quer ser saudável, mas também tem que ser magra. Você tem que ter dinheiro, mas não pode pedir dinheiro porque é mal-educado.
Você tem que ser uma chefe, mas não pode ser má. Você tem que comandar, mas não pode arrasar as ideias dos outros. Você deve adorar ser mãe, mas não fale sobre seus filhos o tempo todo. Você deve ser uma mulher de carreira, mas também estar sempre cuidando dos outros.
Você tem que responder pelo mau comportamento dos homens, o que é uma loucura, mas se apontar isso é acusada de reclamar. Você deve estar sempre bonita para os homens, mas não tão bonita a ponto de tentá-los demais ou ameaçar outras mulheres, porque deve fazer parte da sororidade.
Mas sempre se destaque e sempre seja grata. Nunca se esqueça de que o sistema é manipulado. Portanto, encontre uma maneira de reconhecer isso, mas também seja sempre grata. Você nunca deve envelhecer, ou ser grosseira, se exibir, ser egoísta, cair, falhar, demonstrar medo, sair da linha.
É tão difícil! É muito contraditório e ninguém lhe dá uma medalha ou agradece! E acontece que, na verdade, você não apenas está fazendo tudo errado, como também é tudo sua culpa. Estou tão cansada de ver a mim mesma e a todas as outras mulheres se esforçando para que as pessoas gostem de nós. E se isso tudo também vale para uma boneca que apenas representa as mulheres, então nem sei”.

Enquanto só queremos autonomia sobre nossos corpos, homens os objetificam e os violam. Os índices de violência contra a mulher não diminuem e os casos de agressão, quase na sua totalidade, estão relacionados com a questão de gênero e, na grande maioria, à violência doméstica e familiar.

Essas considerações podemos fazer sem sequer adentrar o mérito, como nós profissionais do direito, gostamos de dizer. São futuros médicos, de diversas especialidades, que tratarão homens, mulheres e crianças. Como será esse contato, a empatia necessária para alcançar um diagnóstico se desde tão cedo eles veem os corpos femininos unicamente como um objeto, como fonte de prazer? Não estavam ali presentes jogadoras de vôlei, mulheres, mas corpos cuja única função era lhes servir.

Essa elite de jovens brancos, cujo poder econômico consegue suportar uma mensalidade de quase oito salários mínimos, se afasta cada vez mais da realidade brasileira e atitudes desse tipo, sem nenhuma repercussão, como seria o caso, se o vídeo não tivesse viralizado, estimulam o comportamento insensível, antipático, indiferente e preconceituoso, mantendo-a nessa bolha social.

Que tipo de ensino está sendo proporcionado, que tipo de estudantes estão sendo aprovados? Que tipo de profissionais se tornarão?

Não à toa temos tantos relatos de abusos por parte de médicos. Um dos mais recentes, foram estupros protagonizados por um anestesiologista enquanto a mulher estava dando à luz .

Além disso, há estudos que apontam que mulheres têm mais chances de morrer se operadas por cirurgiões homens e, uma das causas estudadas, é “a existência de uma diferença significativa de percepção de dor – médicos do sexo masculino têm “uma apreciação mais baixa da gravidade dos sintomas em pacientes do sexo feminino” , sem se falar no racismo médico , em que mulheres negras são mais suscetíveis a serem vítimas de violência obstétrica , por exemplo.

Essa estrutura patriarcal e o machismo não afetam somente as mulheres, apesar de serem as maiores vítimas , os homens também sofrem , e, apesar de tímida evolução , ainda há um caminho longo a ser percorrido, impondo que todos, homens, mulheres e pessoas não binárias, lutemos por uma sociedade feminista (lembrando que feminismo é um movimento filosófico, político, cultural e social que tem como objetivo lutar pela igualdade de gênero. Já o machismo se constitui na verdadeira negação desses princípios, uma vez que favorece e enaltece o sexo masculino sobre o feminino, recusando a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros; portanto, queiram ou não, é um erro elementar fazer do feminismo uma oposição antitética ao machismo).

Precisamos repensar com urgência os valores que estão sendo repassados para nossos descendentes. Precisamos urgentemente que, desde o ensino fundamental, se discuta com responsabilidade assuntos como feminismo, machismo, racismo, LGBTQIA+fobia, se promova uma interação saudável e igualitária entre os sexos e que não nos acanhemos diante de temas polêmicos, tudo para que episódios como o ora discutido jamais voltem a acontecer. Não é demais sonharmos: nunca mais.

Porém, antes e mais importantes do que depurações de currículos acadêmicos, precisamos melhorar nossa humanidade. Antes que nos seja terrivelmente tarde.

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Aline de Carvalho Giacon

Escrito por Aline de Carvalho Giacon