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A VIDA DA MULHER NÃO É FÁCIL

A VIDA DA MULHER NÃO É FÁCIL

28-07-22 | Artigos | Aline de Carvalho Giacon |

O título adaptado do bordão “a vida do crente não é fácil”, do @enderson_cobra (instagram) surgiu como uma maneira espirituosa e leve de dizer que não é fácil ser mulher, hétero e solteira, principalmente diante de algumas histórias relatadas e da dificuldade de relacionamentos nessa era de aplicativos. Tenho sentido, no entanto, uma necessidade de colocar em palavras alguns sentimentos e reflexões que, sem a intenção de atacar e ofender, peço, especialmente aos homens héteros que eventualmente leiam esse texto, que reflitam e conversem com as mulheres das suas vidas, até para entender se estou sozinha nesses “achismos”.

Que os homens, no geral, têm deixado a desejar em alguns aspectos, isso não é novidade. Apesar de todos os avanços da sociedade, ainda temos a predominância da atuação da mulher nos afazeres domésticos, a equiparação salarial continua sendo uma quimera e os índices de violência contra a mulher sobem todos os dias1.

Que “não é todo homem” a gente já sabe. E agradecemos aos homens feministas que nos rodeiam, que nos escutam e que fazem o possível para melhorar, entender nossas demandas e aderir às nossas lutas. A questão é que não é todo homem, mas é sempre um homem, para parafrasear tantas mulheres incríveis que têm escrito sobre o assunto e que trouxeram essa reflexão, apesar de eu não conseguir delimitar quem tenha apresentado, primeiro, essa expressão.

Não posso negar a paixão e até revolta que esse assunto me causa. Já fui alertada por várias pessoas que tenho uma tendência em sempre defender a mulher, mesmo sem saber detalhes sobre o caso específico e parto do pressuposto de que a verdade está com ela.

Isso não significa que se trata de uma presunção absoluta. Para usar um termo jurídico, é mera presunção juris tantum, ou seja, relativa, que aceita prova em contrário.

Refletindo sobre essa questão me perguntei se seria justo partir dessa premissa. A conclusão, que não é definitiva, claro, é que não acredito estar sendo injusta. Parcial, com certeza. Mas não sou juíza e minha opinião, convenhamos, não vai impor nada a ninguém. E operadores do direito bem sabem a importância da demonstração do prejuízo.

Minha reflexão passou por algumas considerações que acredito valem a pena serem expostas, ainda que de forma bem resumida.

Basicamente meu raciocínio foi nesse sentido:
• Toda mulher já viveu algum tipo de violência de gênero (não necessariamente física);
• Toda mulher conhece alguma história de estupro ou assédio (seja de amiga, conhecida ou, infelizmente, já passou pessoalmente por isso);
• A violência sexual contra a mulher é quase que exclusivamente praticada por homens;
• A violência doméstica é predominantemente praticada por homens;
• Sabemos a dificuldade de condenação por esses crimes, que, normalmente, são praticados na clandestinidade, apesar de majoritariamente por pessoas do convívio da vítima;
• Sabemos o quanto a mulher que conta sua história de abuso, especialmente quando o faz anos depois do ocorrido, ou sem provas, é julgada pela sociedade como um todo (muitas vezes por nós mesmas).
• Pensando em todas essas considerações, sabendo que basta uma pesquisa no google sobre “morta por” e “morto por” para vermos a disparidade entre as situações e a predominância da violência praticada por indivíduos do sexo masculino, como não partir do pressuposto de que a mulher está falando a verdade? É até mesmo uma questão estatística.

Admito que não vou passar pano para atitudes erradas só porque praticadas por mulheres, mas olharei, sempre, com mais empatia para seus relatos, até mesmo pela vivência pessoal das dificuldades que passamos.

Não paramos muito para pensar sobre as alterações hormonais que a mulher sofre, afinal, é algo normal. Mas, especialmente nesses dias, até pela notícia da cirurgia de endometriose que a Anitta se submeteu, tenho refletido nisso. Falei no desabafo anterior sobre como sangramos todos os meses, por décadas. O ciclo menstrual, que, curiosamente, pode durar até 35 dias, passa por três fases. Na fase folicular, que se inicia com o sangramento menstrual, “comum o surgimento de sintomas como cólicas menstruais, dor de cabeça, fadiga, aumento da frequência de urinar, dor ou sensação de peso na parte inferior do abdômen e na região lombar. Crises de enxaqueca também são mais frequentes nessa fase”. Apesar do fluxo menstrual durar de 3 a 7 dias, essa fase dura 14. Em seguida, a fase ovulatória, mais curta (cerca 16 a 32 horas), começa com o aumento súbito do hormônio luteinizante, que estimula o rompimento do folículo ovariano para que o óvulo seja liberado. Após a liberação do óvulo inicia a fase lútea, em que o folículo rompido forma um tecido chamado de corpo lúteo que, além de estrogênio, produz maior quantidade de progesterona”, que provoca “modificações no endométrio que favorecem a manutenção de uma possível gravidez até a placenta se desenvolver2”. “Quando a gestação não acontece, o corpo lúteo regride, interrompe a produção de hormônios e é absorvido. Os níveis de estrogênio e progesterona diminuem e o endométrio, que não consegue mais se manter, se descama, dando início à menstruação”. No final dessa fazer ocorre a famosa TPM (tensão pré-menstrual) que “pode causar uma série de sintomas desagradáveis, como dores e inchaço nas mamas e no abdômen, dores de cabeça e nas pernas e cansaço, além de sintomas psicológicos, como irritabilidade, ansiedade e tristeza. Podem ocorrer ainda alterações no sono e no apetite e desejos por alimentos específicos” e que pode durar até o quarto dia da menstruação.

Imaginem, homens, passar por tudo isso, todos os meses, durante anos. Imaginem a transformação que o corpo da mulher sofre com a gravidez, puerpério e amamentação, as alterações de humor e as ondas de calor, sintomas comuns da menopausa. Sem minimizar as experiências masculinas, mas, o que vocês sofrem que pode se comparar com tudo isso?

Aí, casualmente, me deparei com um vídeo no instagram (não consegui localizar para citar), em que um homem traz uma situação que, na visão dele, é pouco abordada e refletida: “como as mulheres não aceitam a rejeição”. Basicamente era ele falando que as mulheres não conseguem aceitar a rejeição, como se o homem tivesse sempre que estar disposto ou disponível, sendo que, na fala dele, às vezes ele só quer jogar videogame.

No curto trecho que assisti ele reflete que, diante de uma rejeição, muitas vezes a mulher parte para ofensas, por vezes homofóbicas, e xingamentos. E que seria importante refletir sobre isso.

Não discuto a inaptidão feminina com a rejeição. Na verdade, acredito que ninguém saiba lidar muito bem com isso. A pequena diferença é que, enquanto o homem é xingado, mulheres são agredidas3 e, muitas vezes, mortas4.

O autor do vídeo que me desculpe, mas diante daquele trecho a minha única indagação é se não está faltando nada para ele fazer. Fiquei pensando como deve ser fácil a vida do homem cis, hétero, branco e de classe média.

Essa é a questão que mais lhe aflige?
Não é incomum ouvirmos a polêmica sobre quem deve pagar a conta no encontro. Se deve ser dividida ou paga pelo homem. Até mesmo o Caio Castro se posicionou a respeito.

Diante dessa controvérsia, vale reproduzir um tweet que eu acabei de ler da Isabella Scherer (@isabellascherer):

“teve um boy ai que praticamente terminou comigo porque não queria gastar com restaurante e eu sempre amei sair para comer, aí convidava e levava para jantar e pagava porque EU queria, eu fazia questão da companhia
e o boy ficou com sérios problemas de auto estima por conta disso”

Novamente, com o devido respeito aos Caios Castro, essa é a questão que os homens pensam ao refletir sobre igualdade de gênero?
Estamos tentando parir sem sermos estupradas5, amamentar sem sermos mortas6, cuidar dos nossos filhos sem sermos mortas7, terminarmos um relacionamento sem condenar a nossa família à morte8, fora toda a luta por equiparação salarial, autonomia dos nossos corpos, a constante preocupação com assédio, dentre tantas outras.

E vcs se preocupam com um xingamento ou com o ônus de pagar a conta do encontro? Sério?

Cada dia mais se torna urgente uma reflexão mais profunda sobre o feminismo pelos homens. Nós, mulheres, vivemos essa luta todos os dias, conversamos sobre isso, ainda que não nominemos o assunto. Todos os progressos, todas as conquistas, no entanto, serão em vão se não conseguirmos que a adesão dos homens a essa luta seja efetiva, que saia do papel e que não seja apenas protocolar.

O assunto não é simples, não é confortável, vai causar intensos autoquestionamentos, mas é essencial que saiamos, todos, da zona de conforto e vai (muito) além de quem deve pagar a conta.

1 https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/seguranca/audio/2022-06/tres-mulheres-morrem-por-dia-no-brasil-por-feminicidio
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2022/04/15/feminicidios-sobem-35percent-no-primeiro-trimestre-de-2022-e-rs-ve-reverter-queda-do-ultimo-ano.ghtml
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/07/04/casos-de-feminicidio-aumentaram-73percent-em-cinco-anos-no-rj.ghtml
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/04/19/denuncias-de-feminicidio-crescem-35percent-em-marco-no-estado-de-sp.ghtml
2 https://drauziovarella.uol.com.br/mulher-2/menstruacao/entenda-as-fases-do-ciclo-menstrual/
3 https://www.leiagora.com.br/noticia/122762/homem-nao-aceita-rejeicao-e-agride-mulher-em-matagal
4 https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2020/09/21/no-ac-homem-mata-jovem-por-ela-nao-querer-namorar-com-ele-se-sentiu-rejeitado-e-matou.ghtml
https://capricho.abril.com.br/comportamento/johanna-de-19-anos-e-estrangulada-por-homem-que-nao-aceitou-um-nao/
5 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/estupro-de-gravida-em-hospital-publico-do-rio-durou-pouco-mais-de-nove-minutos/#:~:text=Compartilhe%3A,indiciado%20por%20estupro%20de%20vulner%C3%A1vel.
6 https://noticias.r7.com/sao-paulo/fotos/mulher-e-morta-a-tiros-pelo-ex-marido-enquanto-amamenta-bebe-em-sp-01052015
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/11/12/mulher-amamentando-em-praca-e-morta-a-tiros-e-bebe-e-baleado-no-piaui.htm
7 https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2022/07/27/suspeito-de-matar-mulher-e-filho-bebe-em-sc-passou-por-tres-estados-e-trocou-de-carro-antes-de-ser-preso-diz-policia-militar.ghtml
8 https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/07/19/apos-sete-dias-homem-que-matou-ex-companheira-mae-e-irma-dela-em-brumadinho-ainda-nao-foi-localizado-pela-policia.ghtml

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Aline de Carvalho Giacon

Escrito por Aline de Carvalho Giacon